O maior levante de escravizados da história do Brasil, a Revolta dos Malês, teve início na madrugada de 24 para 25 de janeiro de 1835, em Salvador, Bahia. A revolta visava derrubar o regime escravagista do império e encerrar a imposição da fé cristã e mobilizou centenas de africanos, sobretudo iorubás e hauçás seguidores do islã. O Brasil foi o país que mais utilizou mão de obra escravizada em toda a era moderna.
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Entre os séculos XVI e XIX, 5 milhões de africanos foram escravizados e trazidos para o Brasil, o equivalente a quase metade do volume de africanos escravizados em todo o mundo durante esse período. Um dos principais destinos desse comércio humano era a Bahia, onde escravizados e escravizadas trabalhavam, principalmente, nas monoculturas de tabaco e nos engenhos de açúcar do Recôncavo Baiano. Em 1830, os cativos respondiam por 40% da população de Salvador, então com 65.000 habitantes; desses, 63% haviam nascido na África. Somando-se cativos, alforriados e cidadãos livres, negros e negras representavam 78% da população da capital baiana.
A presença massiva de cativos fez da Bahia um dos epicentros da resistência antiescravagista, registrada desde os primórdios da colonização. Somente entre 1807 e 1835, houve mais de trinta revoltas de escravizados e escravizadas. Temerosos de que os acontecimentos da Revolução Haitiana se repetissem no Brasil, os donos de engenho demandavam o aumento da repressão contra os cativos.
Os escravizados foram convertidos forçadamente ao cristianismo, proibidos de realizar manifestações de outras matrizes religiosas e submetidos a enorme violência e aumento da carga de trabalho. A coerção sistemática impeliu os escravizados e escravizadas a organizarem de modo mais eficaz sua resistência, o que se intensificou após a Independência do Brasil, em 1822, período de grandes disputas políticas e marcado por conflitos e revoltas generalizadas em vários lugares do país.
Os Malês 5qwk
A revolta de 1835 recebeu o nome de Revolta dos Malês em referência à presença massiva de muçulmanos. Malê era a designação dada na Bahia aos negros de origem islâmica (chamados “imalês” na língua iorubá). A maioria dos revoltosos era africana, oriunda da chamada “Costa dos Escravos” (regiões costeiras da Nigéria, do Togo e do Benim), sobretudo iorubás (também ditos nagôs) e hauçás.
Em menor proporção, outros grupos étnicos e religiosos também integraram com o levante, incluindo um núcleo de praticantes do candomblé. A ampla adesão de muçulmanos da África Ocidental já havia sido registrada em revoltas anteriores (sobretudo nos levantes de 1807 e 1814), evidenciando não apenas o conhecimento prévio de técnicas militares, mas também relevância da identidade étnica e religiosa para o movimento. A proibição das práticas religiosas autorizaria os malês a responderem com a “jihad” — conforme o Alcorão, “combater, pela causa de Allah, aqueles que os combatem”.
A revolta baseou-se em uma sofisticada estratégia de combate. Os malês coordenaram secretamente a criação de um fundo com 80 mil réis para adquirir e fabricar armas. A articulação do levante ficou a cargo dos chamados “escravos de ganho”, que tinham mais liberdade para circular pelas cidades do que os que trabalhavam nas fazendas.
A maioria dos revoltosos eram alfabetizados em língua árabe, o que facilitou a comunicação e o planejamento. Entre os líderes da revolta estavam seis nagôs, sendo cinco escravizados (Ahuna, Pacífico Licutan, Sule, Dassalu e Gustard) e um liberto (Manoel Calafate). Também ajudaram na coordenação do escravizado Luís Sanim, da nação tapa, e o hauçá liberto Elesbão do Carmo. O plano de ataque é atribuído a um escravizado chamado Mala Abubaker.
A insurreição 641q4w
O levante foi marcado para ocorrer ao fim do mês sagrado do Ramadã, no dia 25 de janeiro, celebração do “Laylat al-Qadr”, ou “Noite do Destino”, que marca a revelação do Alcorão ao profeta Maomé. A data coincidia com o Dia de Nossa Senhora da Guia, data em que os católicos se dirigiam em procissão até a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, deixando o centro da cidade vazio.
Os malês pretendiam fomentar uma rebelião generalizada, iniciando uma série de incêndios em diferentes bairros de Salvador, para distrair a polícia. Após tomarem o centro de Salvador, se deslocariam de Vitória até a Península de Itapagipe. Avançariam em seguida pelo Recôncavo Baiano, invadindo os engenhos e libertando os cativos. Consolidado o domínio da região, derrubariam o governo, encerrando o suplício da escravidão e a imposição do catolicismo.
O levante mobilizou entre 600 e 1.500 combatentes. Um grande grupo liderado por Manoel Calafate reuniu-se no porão de uma residência na Ladeira da Praça, onde fizeram preces acertaram os últimos preparativos. Mas antes que alguém pudesse deixar o local, a casa foi cercada por forças policiais. Os rebeldes haviam sido traídos e o levante denunciado a um juiz de paz.
Com o planejamento da revolta arruinado, os malês viram-se obrigados a antecipar e improvisar as ações. Um grupo de sessenta rebeldes partiu até a Câmara Municipal, com o objetivo de libertar Pacífico Licutan, líder nagô preso em meio aos preparativos para seu leilão, a fim quitar uma dívida de seu “proprietário”. A investida, entretanto, foi repelida pela guarda do palácio.
Após recuarem, os malês se uniram a um outro grupo de combatentes e iniciaram uma série de ações em diversas partes de Salvador. A batalha principal ocorreu quando os malês se depararam com o quartel da cavalaria, na região Água de Meninos. Muito mais numerosas e equipadas com armas de fogo, as forças policiais levaram vantagem.
O levante foi sufocado em menos de 24 horas. Os malês foram submetidos a um massacre, que resultou na morte de mais de setenta pessoas. Os corpos foram enterrados em uma vala comum no campo de pólvora, sem qualquer rito religioso.
A repressão aos sobreviventes foi brutal. Mais de 500 pessoas que apoiaram a revolta foram condenadas ao degredo na África. Os combatentes identificados foram condenados à pena de açoites, recebendo de 300 a 1200 chibatadas.
Dezesseis homens apontados como líderes pelas forças policiais foram condenados à pena de morte. Desses, quatro foram executados por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvora: Jorge da Cruz Barbosa, Pedro, Gonçalo e Joaquim. O líder malê Pacífico Licutan foi condenado a 1200 chibatadas.
A repressão não se limitou aos cativos que participaram do levante. Responsabilizados pelo ocorrido, os escravizados de origem africana, sobretudo os muçulmanos, foram submetidos a maus tratos, punições severas e torturas nos anos seguintes.
Apesar da derrota, a Revolta dos Malês teve enorme importância para o fortalecimento da luta antiescravagista, não apenas inspirando novos levantes ao longo do século XIX, mas também denunciando a insubmissão e indignação de negras e negros oprimidos pelo regime escravocrata.
Editado a partir de texto de Ópera Mundi
Ilustração Harper’s Weekly/Arquivo